A outra batalha de Obama
Depois da vitória contra o sistema de saúde, o presidente americano enfrenta as companhias de crédito estudantil e promove a maior reforma na área das últimas décadas
Ana Bernstein, de Nova York
Fonte: Uol Educação
Promessa cumprida: fim dos incentivos deve gerar economia de US$ 68 bilhões em dez anos
Em meio ao acirrado debate sobre a reforma do sistema de saúde norte-americano que mobilizou a atenção da mídia e dividiu a opinião pública nos últimos 12 meses, poucos prestaram atenção a outra importante proposta de lei em tramitação no Senado, a Lei de Auxílio e Responsabilidade Fiscal Estudantil de 2010 (Student Aid and Fiscal Responsibility Act of 2010, conhecida como Safra, na sigla em inglês), cuja aprovação no último mês de março representa a mais significativa reestruturação do sistema de crédito educativo nos Estados Unidos nas últimas décadas. A proposta havia sido apresentada em 2009, como reportou a revista Ensino Superior (ed.127), como parte dos esforços do então recém-empossado presidente Barack Obama contra a pior crise financeira dos Estados Unidos desde a Grande Depressão dos anos 30.
Num país em que o custo da educação de nível superior é considerável, mesmo em universidades públicas (estaduais, municipais e comunitárias), o empréstimo para fins educativos tornou-se uma das maiores e mais lucrativas indústrias nacionais, movimentando US$ 85 bilhões por ano. Embora o governo federal ofereça auxílio financeiro a estudantes de graduação cuja renda familiar seja inferior a US$ 50 mil por ano por meio de Pell Grants, o maior programa de auxílio financeiro estudantil do país, o auxílio fica, em geral, muito aquém do custo das anuidades universitárias, obrigando estudantes a financiar seus estudos por meio de empréstimos educativos.
A Lei de Auxílio e Responsabilidade Fiscal Estudantil de 2010 elimina o Programa Federal Familiar de Empréstimo Educativo, baseado em empréstimos de companhias privadas garantidos pelo governo federal (veja box), e determina que todos os empréstimos passem a ser diretos a partir de 1º de julho deste ano. De acordo com o Serviço de Pesquisa do Congresso, apenas a eliminação dos incentivos às companhias privadas vai gerar uma economia de US$ 68 bilhões nos próximos dez anos, recursos que serão investidos em programas de educação. Neste sentido, a Lei representa o maior investimento educacional na história do país.
"Durante muito tempo nosso sistema de empréstimo estudantil vem trabalhando a favor dos bancos e das instituições financeiras. Hoje, finalmente estamos fazendo nosso sistema de empréstimo estudantil trabalhar a favor dos estudantes e de nossas famílias", afirmou o presidente Barack Obama no ato de assinatura da lei.
Anova lei prevê que US$ 36 bilhões sejam investidos em Pell Grants, possibilitando a concessão de 820 mil bolsas adicionais até o ano de 2020. Além disso, o valor do auxílio também aumenta, passando de US$ 5.350 para US$ 5.500 no ano acadêmico de 2010-2011. A partir de 2013, o valor passa a ser reajustado automaticamente pelo índice da inflação, mais 1%.
Outras medidas incluem US$ 2 bilhões para as faculdades comunitárias (faculdades que oferecem cursos de dois anos com certificados e diplomas de associados), a serem empregados em programas educacionais e de treinamento profissional; US$ 750 milhões para o programa de Desafio ao Acesso à Faculdade, que visa custear programas inovadores para as instituições com foco em desenvolver a competência financeira e ajudar os estudantes a permanecer na faculdade e se formar e US$ 2,55 bilhões para faculdades e universidades historicamente negras e instituições que servem a minorias.
Ainda estão incluídos na medida US$ 1,5 bilhão a serem destinados para fortalecer o novo programa Pagamento Baseado em Renda (Income-Based Repayment Program), que permite a estudantes de baixa renda limitar os pagamentos de empréstimo a 15% de sua renda líquida para empréstimos educativos feitos antes de 2014 e 10% para empréstimos educativos feitos a partir de 2014.
Além dos recursos investidos em educação, US$ 10 bilhões serão usados para amortecer o déficit nacional.
Outra mudança significativa do programa de Obama diz respeito ao prazo de pagamento dos empréstimos educativos. Antes da aprovação da lei, os estudantes tinham até 25 anos para pagar o empréstimo.
A partir de agora, após 20 anos de pagamento, o restante da dívida será perdoado. E ainda há benefícios para as carreiras consideradas prioritárias pelo governo, no caso dos Estados Unidos, as ligadas ao próprio governo.
Se o estudante optar por seguir uma carreira no serviço público - como professor, enfermeira, policial ou militar - sua dívida será perdoada após dez anos do início do contrato. Uma benesse impensável no Brasil.
Enquanto a lei contou com o amplo apoio das instituições de ensino superior e associações ligadas à educação, houve grande resistência por parte dos bancos e instituições financeiras e de políticos ligados aos interesses privados, tanto republicanos quanto um pequeno número de democratas. Uma das maiores companhias privadas no setor, a Sallie Mae gastou aproximadamente US$ 4 milhões em lobistas na tentativa de impedir a aprovação da lei, argumentando que a nova legislação eliminaria 2,5 mil empregos no setor privado. Para o deputado republicano Howard P. "Buck" McKeon, da Califórnia, a lei representa "uma tomada de poder pelo governo do programa de empréstimo educativo do setor privado, retirando opções e benefícios dos estudantes ao mesmo tempo em que adiciona bilhões de dólares à folha de balanço do governo".
O senador Tom Harkin, que introduziu a lei no Senado, contra-argumenta. "Nesses tempos duros econômicos, num momento em que estamos impondo um congelamento de gastos, não podemos em sã consciência continuar um programa de empréstimos indireto que é caro, desperdiçador e totalmente desnecessário. Os empréstimos diretos proveem os mesmos financiamentos nos mesmos termos. Por que, então, não eliminar o intermediário?"
Para Marcia Sullivan, diretora de Relações Governamentais da Associação de Banqueiros do Consumidor, não há benefícios para os alunos. "O plano do presidente [Obama] não é, como tem sido anunciado, uma forma de promover a educação de nível superior. O plano não reduz o custo de empréstimos educativos para um só aluno", justifica.
O presidente Obama reconhece que a reestruturação do sistema de financiamento não é suficiente para resolver o problema do custo das anuidades, tanto das universidades públicas quanto privadas, que podem variar de US$ 6,5 mil por semestre em faculdades comunitárias com programas profissionalizantes de dois anos a US$ 25 mil por semestre em cursos de quatro anos. Ao fazer um discurso sobre a nova lei, Obama chamou a atenção para a responsabilidade das instituições. "Nós continuamos a esperar que as faculdades e universidades façam sua parte para segurar os aumentos das anuidades. Isso tem de acontecer."
Como eram os empréstimos
Até a aprovação da nova legislação, os empréstimos estudantis eram variados. O mais antigo, o Programa Federal Familiar de Empréstimo Educativo, criado em 1965, consistia em empréstimos de companhias privadas garantidos pelo governo federal, que pagava taxas de incentivo, além de garantir o total do empréstimo no caso de não pagamento. Um negócio duplamente lucrativo, já que as companhias recebiam tanto os juros dos estudantes quanto os incentivos do governo, e totalmente isento de risco. Não surpreende, portanto, que a Sallie Mae, uma das maiores companhias privadas no setor, tenha sido considerada a segunda companhia mais lucrativa do mundo em 2005. Em 1992, Bill Clinton introduziu o Programa Federal de Empréstimo Estudantil Direto, permitindo aos estudantes empréstimos diretos do governo.
Mas, os estudantes frequentemente são obrigados a complementar os financiamentos por meio de empréstimos privados de bancos, não garantidos pelo governo e sujeitos a taxas de juros mais altas, já que tanto os empréstimos diretos quanto os realizados pelo Programa de 1965 têm um limite anual, nem sempre suficiente para cobrir os custos crescentes das anuidades universitárias.
Afogados em dívidas
Os custos universitários nos Estados Unidos praticamente dobraram nos últimos 20 anos. Estudo realizado pela organização independente e sem fins lucrativos Education Sector, intitulado Afogando-se em dívidas: a emergente crise da dívida estudantil, revela que dois terços dos estudantes universitários americanos completam os estudos com uma dívida média de US$ 23 mil.
De acordo com o estudo, em 1993 apenas 32% dos estudantes de graduação tomavam empréstimos educativos para cursar a universidade. De 1993 a 2008, a dívida média por ano aumentou mais de 50% e a dívida média anual para estudantes de universidades privadas de quatro anos cresceu 70%.
Para estudantes de pós-graduação ou de direito (que nos Estados Unidos equivalem a uma pós-graduação), a situação é ainda mais grave no que se refere aos custos e empréstimos educativos, já que auxílios como o Pell Grants não existem para a pós-graduação.
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